O adjetivo surreal faz parte do vernáculo com o sentido de absurdo, incongruente, incoerente, ilógico, estranho, bizarro, esquisito, que não se enquadra na realidade.
No Brasil, que não é uma terra para amadores, é preciso afirmar e repetir à exaustão, temos uma vertente inovadora do movimento antes destacado. Trata-se do surrealismo constitucional.
Nos últimos tempos foram ouvidas e lidas as mais claras manifestações do referido surrealismo constitucional. Afinal, não podem escapar dessa qualificação as seguintes ideias ou expressões: “poder moderador (militar)”, “golpe constitucional”, “intervenção militar constitucional” e outras nessa linha.
O mais recente capÃtulo do surrealismo constitucional é o chamamento do Supremo Tribunal Federal para afirmar as âmais óbvias das obviedadesâ: a) existem, só e somente só, três Poderes no Estado brasileiro (Legislativo, Executivo e Judiciário); b) as Forças Armadas não são um Poder do Estado; c) as Forças Armadas não desempenham um papel moderador sobre os Poderes do Estado e d) não existe o mais mÃnimo espaço institucional para um âgolpe constitucionalâ ou âintervenção constitucionalâ por parte das Forças Armadas.
A situação é tão inusitada que é extremamente desgastante o consumo de tempo na produção de argumentos para demonstrar a impossibilidade dessas soluções pretorianas tresloucadas. Seria como explicar que o fogo é quente, a água é molhada, o gelo é frio, a Terra orbita o Sol ou que a Terra não é plana (aqui temos alguma complicação).
Ocorre que o impensável no plano jurÃdico-constitucional não se coloca necessariamente como um óbice no plano da ação polÃtica de indivÃduos motivados pelas mais abjetas visões de mundo. Algumas dessas pessoas chegam ao ponto de glorificar torturadores como heróis e fazer apologia das condutas mais bárbaras e censuráveis no convÃvio humano (discriminações de todos os tipos e modos, ódios e violências fÃsicas e psicológicas como condutas normais e esperadas, supressão pura e simples de direitos e garantias fundamentais duramente conquistadas ao longo de séculos de lutas sociais, entre outras atrocidades).
A sociedade brasileira testemunhou perplexa recentes conspirações palacianas e fortes depredações do patrimônio público voltadas para a implementação de um golpe militar com o intuito de impedir a concretização do resultado das últimas eleições presidenciais.
O destino de toda essa gente, mais cedo ou mais tarde, é o xilindró. Diferente do absurdo da âintervenção militar constitucionalâ, o ordenamento jurÃdico qualifica expressamente como crimes os atentados golpistas contra o Estado Democrático de Direito. Basta ler o art. 5o, inciso XLIV da Constituição e os arts. 359-L e 359-M do Código Penal, introduzidos pela Lei n. 14.197, de 2021.
Deve ser destacado, em função dos elementos divulgados na imprensa, que a maior parte dos comandos das Forças Armadas não se dobrou aos apelos golpistas. Prevaleceu a maturidade institucional e a compreensão do verdadeiro papel das Forças Armadas como instituições permanentes do Estado brasileiro, subordinadas ao poder civil, à soberania popular e com limites constitucionais de ação bem delimitados.
Nessa linha, a condição do Presidente da República como comandante supremo das Forças Armadas (art. 84, inciso XIII da Constituição) não autoriza o raciocÃnio de que a mais importante autoridade pública no Brasil pode (com validade jurÃdica) ordenar ações golpistas a serem implementadas pelos militares sob sua liderança. à lição comezinha no mundo jurÃdico que não se cumpre comandos manifestamente ilÃcitos.
Cumpre alertar que tentativas de alterar o art. 142 da Constituição para consagrar expressamente o aludido papel moderador das Forças Armadas, ou mesmo para indicar a possibilidade de uma âintervenção militarâ, esbarram inapelavelmente nos óbices inscritos no art. 60, parágrafo quarto, incisos III e IV da Constituição (cláusulas pétreas).
Por fim, registre-se que os princÃpios ativos das nossas mais profundas transformações socioeconômicas, no rumo da construção de uma sociedade sustentável, democrática, justa e solidária (art. 3o, inciso I da Constituição), não são as Forças Armadas. Esse papel, como corolário da soberania popular (art. 1o, inciso II e parágrafo único da Constituição), está reservado à conscientização, organização e mobilização das mais saudáveis energias populares.
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